ICMS nas aquisições e a não‑cumulatividade do PIS/Cofins

A iminente fixação de tese repetitiva pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, nos Recursos Especiais 2.151.146, 2.150.894, 2.150.848 e 2.150.097, reacende debate de relevância macrofiscal: poderá o valor do ICMS destacado nas notas de aquisição de mercadorias integrar a base de cálculo dos créditos das contribuições ao PIS e à Cofins?

Estimativa da Procuradoria‑Geral da Fazenda Nacional aponta perto de quatro mil processos sobre a temática, dos quais duzentos e vinte e nove já tramitam no STJ; todos encontram‑se suspensos até o pronunciamento final da Corte. O alcance econômico não se resume aos autos: calcula‑se que o tratamento concedido ao imposto estadual pode afetar vários bilhões de reais em créditos presumidos, influenciando tanto a capacidade de investimento das empresas quanto a própria arrecadação destinada à seguridade social.

O cerne do conflito reside na Lei 14.592/2023, fruto da conversão da Medida Provisória 1.159/2023, que alterou os artigos  3º, § 2º, III, das Leis 10.637/2002 e 10.833/2003 para vedar expressamente o creditamento do ICMS pago na etapa de aquisição.

A norma materializou, em nível infraconstitucional, a diretriz do Supremo Tribunal Federal no Tema 69 — a denominada “tese do século” — que excluiu o imposto estadual da base de cálculo do débito das contribuições. Entretanto, ao estender a exclusão também aos créditos, o legislador modificou a lógica do método subtrativo indireto, pilar do regime não‑cumulativo, criando aparente dissintonia metodológica com o próprio ICMS, cuja não‑cumulatividade se perfaz pelo abatimento do imposto efetivo da fase anterior.

Sob a ótica dos contribuintes, a vedação viola o artigo 195, § 12, da Constituição, pois restringe a neutralidade econômica pretendida pelo princípio da não‑cumulatividade. Se o ICMS compõe o custo efetivamente suportado na aquisição de insumos, dissipá‑lo da base de crédito provoca incidência em cascata e majora artificialmente a carga sobre o valor adicionado, desafiando ainda o princípio da capacidade contributiva.

Do ponto de vista pragmático, empresas industriais e comerciais com longas cadeias de suprimento tendem a suportar maiores distorções, verberando o assunto como questão de competitividade em ambiente globalizado.

A Fazenda Nacional, por seu turno, defende que admitir o creditamento do imposto, ao mesmo tempo em que ele foi excluído do débito, configuraria “duplo benefício”, desequilibraria o fluxo arrecadatório e favoreceria a formação de saldos credores vultosos. Em exposição de motivos à Medida Provisória, a Receita Federal estimou impacto potencial de R$ 56 bilhões em créditos acumulados caso prevalecesse a pretensão dos particulares, quantia que tensionaria o financiamento da seguridade social. A União sustenta, ademais, que o legislador exerceu discricionariedade legítima ao calibrar vantagens fiscais, não havendo direito adquirido a regime jurídico tributário em matéria de créditos presumidos.

A argumentação fazendária, todavia, revela fragilidade dogmática. O regime subtrativo indireto não exige simetria perfeita entre bases de débito e de crédito, mas consonância com custos incorridos; logo, excluir valor indissociável do gasto de aquisição erode o conceito de valor adicionado, cujo peso deveria orientar a tributação do consumo.

A compatibilização entre Sistema Constitucional Tributário e legislação ordinária reclama interpretação conforme, apta a preservar a integridade da regra‑matriz e evitar tributação residual não autorizada pelo texto maior. Ressalte‑se que, no Tema 1.231, o STJ considerou legítima a vedação de créditos sobre reembolso de ICMS‑ST por se tratar de substituição tributária, hipótese distinta daquele imposto próprio que onera, em definitivo, o adquirente. O precedente demonstra sensibilidade à peculiaridade fática; espera‑se, pois, que a Corte igualmente diferencie conceitos ao enfrentar o novo litígio.

À luz desses vetores, entendo que a exclusão incondicional do ICMS da base de créditos de PIS e Cofins afronta a arquitetura constitucional do regime não‑cumulativo e representa desequilíbrio concorrencial. O Superior Tribunal de Justiça dispõe de oportunidade singular para recompor coerência sistêmica: admitir o crédito quando o imposto for efetivamente suportado pelo adquirente, sem vulnerar a arrecadação, pois o montante já não integra a base do débito.

Caso contrarie essa linha, o tribunal chancelará solução que, embora confortável ao erário no curto prazo, poderá incrementar litígios, redirecionar investimentos e pressionar o Congresso a reexaminar o modelo de não‑cumulatividade. Em tempos de reforma tributária, coerência conceitual vale tanto quanto solidez arrecadatória: o julgamento vindouro dirá qual desses valores prevalecerá.

A propósito, a experiência comparada da União Europeia reforça o raciocínio: o artigo 168 da Diretiva 2006/112/CE assegura ao contribuinte direito de deduzir o IVA pago nas entradas sempre que esse valor esteja atrelado a operações tributadas à jusante, justamente para impedir cumulatividade e distorção concorrencial. Em cenário de pretendida convergência ao IVA, desprezar tal lição poderia degradar previsibilidade normativa e dificultar a inserção do Brasil em cadeias globais de valor no cenário atual.

Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-jul-29/icms-nas-aquisicoes-e-a-nao%e2%80%91cumulatividade-do-pis-cofins/

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