O aumento do IOF, promovido pelo Decreto nº 12.499/2025, expôs mais do que uma controvérsia tributária e constitucional: revelou uma crise constitucional latente entre os Poderes da República. Em meio a decretos, sustações legislativas e decisões judiciais, o episódio trouxe à tona uma pergunta fundamental: quem está autorizado a dizer o direito em tempos de tensão institucional?
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Com a sustação do decreto pelo Congresso, o Executivo buscou amparo no Judiciário, trazendo à discussão ao Supremo Tribunal Federal, por meio da ADC (ação declaratória de constitucionalidade) nº 96/DF. A corte suprema já havia sido acionada por diversos partidos políticos, em que buscava a inconstitucionalidade da decisão do Congresso de “derrubar” o decreto do governo federal.
Cautelarmente, o relator, ministro Alexandre de Moraes, em 4 de julho, suspendeu os efeitos dos Decretos Presidenciais nº 12.466/2025, 12.467/2025 e 12.499/2025, determinando, também, audiência conciliatória entre as partes, a fim de buscar uma alternativa consensual ao impasse.
Posteriormente, Alexandre de Moraes proferiu decisão na ADC 96 MC/DF, reajustando a decisão cautelar anteriormente proferida, para que (i) o Decreto nº 12.499/2025 retornasse a ter efeito, em caráter “ex tunc” (posteriormente revisto); e (ii) manteve a suspensão do artigo 7, parágrafos 15, 23 e 24. Em resumo: (i) restabeleceu o decreto que aumentou as alíquotas do IOF; (ii) suspendeu a incidência do referido tributo sobre as operações do “risco sacado”.
Embora a decisão não tenha sido referendada pelo Plenário da Corte, além de já ter sido amplamente discutida aqui no portal, vale mais alguns comentários, pois a tendência é que o tema siga estampando as capas de jornais.
A conclusão que se chega, com base nos estudos realizados, é contraditória: o Executivo não está errado, tampouco o Congresso. Mas como? Afinal, uma demanda judicial envolve uma dualidade, em que um lado “perde” e outro “ganha”, sendo a palavra final conferida pelo Judiciário.
Pois bem, reside aí a irresignação do presente artigo e a conclusão de que, talvez, nessa situação, quem perde é a ordem jurídica brasileira, mais especificamente a segurança jurídica e a separação dos poderes.
E, para se chegar a essa conclusão, a análise aqui apresentada considerou a necessária separação entre o que é “jurídico” e o que é “político”.
A César o que é de César
Esta análise deve, obrigatoriamente, passar por todos os atos realizados até aqui, analisando-se sua legalidade (ou não). Iniciando por aquele que deu origem ao imbróglio: o Decreto nº 12.499 de 11 de junho de 2025, em que o Presidente da República, na competência que lhe é designada pela Constituição, buscou o aumento da alíquota do IOF sobre operações financeiras e de crédito, além de incluir no rol de hipóteses de incidência a operação chamada “risco sacado”.
Mas tal ato é condizente com o ordenamento jurídico brasileiro? A constitucionalidade do Decreto mencionado parece inquestionável [1]. Sob a ótica da interpretação literal, o Decreto editado está dentro das competências do presidente da República, conferidas pelo artig 153 parágrafo 1º da Constituição, com respaldo do artigo 84 da Carta Magna.
Da mesma banda, o Código Tributário Nacional e a Lei nº 8.894/1994 (que regulamenta o IOF) dispõem acerca do referido tributo, aduzindo que compete ao Poder Executivo alterar as alíquotas tendo em vista os objetivos da política monetária e fiscal. Com a ressalva, apenas, da necessidade de observância dos limites expressamente previstos em lei.
Apesar da doutrina classificar o tributo como “extrafiscal”, não podendo ter caráter meramente arrecadatório – o que levantou a discussão da constitucionalidade do ato – o ordenamento jurídico brasileiro se limita a referir que o exercício da competência do Presidente da República deve ocorrer “tendo em vista os objetivos da política monetária e fiscal”. Nesse tocante, é necessário, portanto, entender como o próprio Executivo tratou a questão, tanto na Exposição de Motivos, quanto na mídia.
Os motivos de tal alteração, segundo a Exposição de Motivos nº 40/2025 MF, em resumo, seria de promover maior “padronização normativa, simplificação operacional e maior neutralidade tributária”. Contudo, à imprensa, o ministro Fernando Haddad [2] defendeu o aumento do IOF como uma medida para “reforçar o caixa” do governo, em busca do cumprimento das metas do arcabouço fiscal.
O próprio presidente Lula, em participação no “podcast” do apresentador e cantor Mano Brown [3], reportou com relação à questão do IOF como medidas “compensatórias” para o cumprimento do arcabouço fiscal, sem a necessidade de corte de gastos.
Ou seja, a exposição de motivos difere da comunicação social dos membros do Executivo, notadamente o presidente da República e o ministro da Fazenda. Ainda que se admita um possível desvio de finalidade na edição do decreto, surge um novo ponto de tensão: qual é o papel do Congresso diante dessa situação? Cabe ao Legislativo sustar o ato presidencial? A análise desloca-se, portanto, do Executivo para o Legislativo.
Em recente texto publicado neste portal, Pedro Merheb [4] traz importante menção ao fato que o “regulamento, independentemente da sua espécie, é primeiramente um ato administrativo, sujeito, portanto, à legalidade sacramentada pelo art. 37 da Constituição”, referindo, ainda, que a menção no CTN (e na Lei nº 8.894/1994) a respeito da necessidade de se observar os objetivos da política monetária, trariam à questão novos contornos, como a possibilidade de uma revisão pelo Congresso (questão que será enfrentada em sequência).
Ainda, menciona a lição do professor Tércio Sampaio Ferraz Jr. [5] quando ao “desvio de finalidade” que se reputa da mais alta importância para o tema analisado:
“(…) no caso dos impostos, haverá inconstitucionalidade por desvio de finalidade quando e se a lei instituidora do imposto pretender alcançar objetivo diverso do que lhe é dado pela norma constitucional atribuidora de competência, com o fito de provocar finalidade prevista para outro tipo de tributo, adequada a este em virtude dos correspondentes meios. (…)”
Da análise da comunicação do Poder Executivo nas mídias, percebe-se que ela está em dissonância do que foi exposto na exposição de motivos. Seria isso um “desvio de finalidade”? Mais importante do que responder a essa pergunta, é analisar a quem compete respondê-la.
Está dentro do espectro de “controle político” ou “controle jurídico”?
Pois bem, o ponto é controverso, como se sabe. Envolve uma ampla discussão sobre as competências de cada ente, assim como os seus limites e o poder de fiscalização. Reputa-se, no ponto, ao texto publicado nesse portal, pelo autor Pablo Francesco Rodrigues da Silva [6].
O autor analisa a divisão existente na atividade normativa dos estados, destacando o gradual aumento da amplitude das competências legislativas no Executivo, como forma de resposta rápida e técnica a nova dinâmica política. A Constituição, contudo, estabelece normas de controle político-jurídico sem a necessidade de modificação formal. Dentre elas, destaca-se do artigo 49, inciso V da Constituição, dispositivo evocado pelo Congresso ao aprovar um decreto sustando os efeitos dos decretos presidenciais de aumento do IOF.
A conclusão proferida pelo autor é a que parece mais razoável, utilizando-se do método interpretativo-indutivo:
“A bem da verdade, a situação deixa transparecer que o controle político sobre o regulamento, não é só possível, como deve ser defendido. O processo democrático é fortalecido, sabendo os seus atores quais caminhos percorrer, além de, valendo-se do texto, constitucional, qual equilíbrio construir para a manutenção da interdependência dos poderes políticos.” [7]
Não só é legítima, na opinião aqui defendida, a atuação do Congresso, como desejável e necessária, como maneira de privilegiar a separação dos poderes (artigo 2º da Constituição) e o sistema de “freios e contrapesos”. A impossibilidade de uma “revisão política” de um ato normativo do Executivo levaria a possibilidade de o ente extrapolar a sua competência sem a existência de uma fiscalização, gerando um desequilíbrio entre os Poderes.
E aqui não poderia restar a palavra final ao Judiciário, haja vista que este, na opinião do autor, limita-se ao controle jurídico, não podendo exercer um controle político.
Judiciário e limites da jurisdição
Chegamos ao ponto nevrálgico da situação: o controle pelo Judiciário.
O STF possui entendimento de que ele pode exercer o controle jurisdicional de constitucionalidade de decreto legislativo de sustação (ADI nº 1.553/DF). Trata-se, no nosso entendimento, de um controle jurídico, não político. Este, foi conferido ao Congresso, conforme já delineado [8].
O que se teria que analisar, no caso, é se o Congresso pode ou não sustar os decretos. É uma análise de competência constitucional, que, a nosso ver, é perfeitamente possível e plausível que ocorre.
Ainda assim, o Min. Relator Alexandre de Moraes proferiu decisão conjunta nas ADIs 7.827 e 7.839 e ADC 96, após restar inexitosa a tentativa de conciliação entre as partes. Nela, entendeu por constitucional o Decreto nº 12.499/2025, determinando o retorno da sua eficácia com efeitos “ex tunc” (os efeitos da medida foram posteriormente revistos pelo ministro, de forma acertada), assim como manteve a suspensão do artigo 7, parágrafos 15, 23 e 24 dos Decretos nº 12.466, 12.467 e 12.499/2025.
Analisando-se a decisão com cuidado observa-se que, com a devida vênia, ela é omissa, uma vez que não analisou a competência do Congresso Nacional para sustar o decreto, conforme o artigo 49, inciso V. Como visto, a decisão do Ministro Alexandre de Moraes tratou apenas da legalidade do aumento.
No nosso entender, há uma omissão, haja vista que a questão de fundo envolve, também, a possibilidade do Congresso “sustar” os atos do Poder Executivo. Na realidade, a discussão principal, a partir da provocação do STF pelo Executivo é exatamente esta: o Congresso possui a prerrogativa de sustar o decreto?
O ministro Alexandre de Moraes deveria ter adentrado nesse tocante, que parece ser inquestionável também: é o sistema de “freios e contrapesos” na sua essência. Não cabe ao Judiciário revisar o mérito da decisão, pois se está no campo da análise política da questão. E essa é de competência do Congresso Nacional, podendo este órgão analisar o desvio de finalidade do decreto executivo, conforme a previsão constitucional.
Cada um no seu quadrado
A disputa entre os Poderes revela uma erosão silenciosa no pacto republicado. Cada Poder deve ser o guardião de seus limites — e não invasor de competência alheia. O sistema de freios e contrapesos é delineado justamente para evitar uma interferência indevida de um Poder no outro.
Temos evidenciado uma postura ativa do Judiciário na análise do espectro político das decisões, o que, com a devida vênia, não é seu papel.
Do ponto de vista da legalidade, no caso do IOF, entendemos que é legítima a postura do Executivo ao editar o referido decreto, mas é igualmente legítima a postura do Congresso Nacional, realizando a sua atribuição, constitucionalmente prevista, de “revisão política”.
E o Supremo Tribunal Federal, ao analisar a questão, ainda que em sede de medida cautelar, deveria analisar ambas as temáticas, mas respeitando a sua atuação na esfera jurídica e não adentrando na esfera política. Como Bernardo Strobel Guimarães, Luis Henrique Braga Madalena e Lucas Sipione Furtado de Medeiros já destacaram neste portal:
“A desarmonia entre os três poderes é uma espécie de doença autoimune, em que partes do mesmo corpo se agridem. Ela coloca em risco a integridade do Estado e por isto deve ser combatida nos termos institucionalmente adequados.” [9]
E a melhor forma de evitar isso é ficar cada um no seu quadrado: a Constituição dispõe dos mecanismos que compõe o sistema de freios e contrapesos e a invasão indevida de um Poder no outro – neste caso, do Judiciário no espectro político — coloca em risco a integridade do Estado.
O risco da desordem institucional
No nosso entendimento, a decisão do ministro Alexandre de Moraes na medida cautelar é omissa, pois deixa de analisar ponto essencial da questão que é a competência constitucional do Congresso para realizar o controle político do decreto. Esperamos que tal ponto seja debatido na análise pelo Plenário.
É necessário reconhecer, contudo, que o STF pode ter agido movido por uma preocupação legítima: o risco de instabilidade econômica e jurídica em um cenário fiscal delicado. A ausência de regulamentação imediata sobre o IOF poderia gerar insegurança para o mercado financeiro, afetando contratos em curso e expectativas de arrecadação. Ainda assim, tais motivações, por mais sensíveis que sejam, não justificam a extrapolação dos limites constitucionais da jurisdição.
No meio tempo, mais um episódio de agravamento da crise política no Brasil e da disputa entre os Poderes.
Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-jul-25/aumento-do-iof-preludio-da-desordem-juridica/