Insegurança jurídica no ITCMD incidente sobre doação e sucessão de ações ou quotas societárias

A incidência do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) na transmissão de ações ou quotas de participações societárias, seja na sucessão causa mortis ou na doação, não raras vezes é objeto de controvérsia jurídica que perpassa pela correta definição da base de cálculo do imposto.

Recentemente, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar o REsp 2.139.412/MT [1], autorizou o arbitramento da base de cálculo de ITCMD pelo Mato Grosso, de modo que se considerasse o valor de mercado dos bens que compunham o patrimônio da pessoa jurídica, cujas quotas foram transmitidas aos herdeiros.

A decisão tomada pela 2ª Turma do STJ baseou-se apenas e tão somente na possibilidade de o Fisco rever a base de cálculo eleita pela contribuinte e proceder ao arbitramento do valor que julga devido, nos termos do artigo 148 do Código Tributário Nacional (CTN). [2] E, sem maiores delongas, fixou que o valor venal “corresponde ao valor de mercado”, nos termos do artigo 38 do CTN.

No caso concreto, o valor venal é considerado, pelo Estado do Mato Grosso, o valor patrimonial das quotas societárias na data da ocorrência do fato gerador, nos termos do artigo 17 da Lei Estadual nº 7.850/02 [3], antes da redação dada pela Lei Complementar nº 798/24 [4]. Assim, ocorrida a transmissão por sucessão os herdeiros, amparados pela legislação estadual, consideraram o valor patrimonial como sendo o valor do patrimônio líquido registrado no balanço patrimonial proporcional ao número de quotas objeto da sucessão.

O Fisco Estadual, entretanto, identificou que alguns imóveis rurais integralizados no capital social da sociedade estavam com valor inferior ao valor de mercado, de modo que reavaliou o ativo para acréscimo do patrimônio líquido da sociedade.

Nesse cenário, o Tribunal Superior entendeu que, sim, a base de cálculo do ITCMD seria o valor de mercado dos bens que compunham o capital social da sociedade. Ocorre que a conclusão não nos parece prosperar, pois a norma estadual, seja na redação vigente à época, seja no texto atualmente em vigor, dispõe sobre o “valor patrimonial” das quotas societárias, expressão comumente relacionada ao valor contábil [5], que não pode, por mera discricionariedade do Fisco, ser alargado para abranger o “valor de mercado”.

O Banco Central define o valor patrimonial como “a parcela do patrimônio líquido calculada proporcionalmente à participação detida”, [6] e Leandro Paulsen leciona que tal valor pode ser calculado pela divisão do valor do patrimônio líquido pelo número de ações, quotas ou participação que compõem o patrimônio da empresa [7].

A própria legislação estadual foi alterada para facultar “ao Fisco efetuar o levantamento de bens, direitos e obrigações considerando o valor contábil”. Sendo assim, tendo a sociedade cumprindo todas as regras contábeis e societárias aplicáveis à integralização do imóvel no capital, não pode ter seu ativo majorado para fins de incidência do ITCMD sem previsão legal.

Retomando à legislação, a Constituição, no artigo 155, inciso I, define que é competência dos estados e do Distrito Federal instituir imposto sobre a transmissão causa mortis e a doação de quaisquer bens ou direitos.

O CTN, por sua vez, estabelece normas gerais em matéria tributária, nos termos do artigo 146, inciso III, alínea ‘a’, da Constituição, de modo que o artigo 38 do códex dispõe que o ITCMD incide sobre o valor venal do bem transmitido, aqui tratando apenas das hipóteses de transmissão de bens imóveis e móveis, não abrangendo a transmissão das participações societárias. Isso porque o CTN é norma de 1966, enquanto a Constituição foi promulgada em 1988. O CTN, portanto, não sofreu atualização nesse tocante para abranger a hipótese de transmissão de quotas.

Os estados, por sua vez, amparados pelo dispositivo constitucional, editam leis locais para tratar não só a base de cálculo, mas toda a regra matriz de incidência do ITCMD.

Ainda na esteira de sua competência constitucional, os estados, na transmissão de quotas de participação societária, elegem como base de cálculo o valor venal referenciado pelo patrimônio líquido contábil constante dos registros da pessoa jurídica.

No caso apreciado pela 2ª Turma do STJ, com todas as vênias aos que entendem de maneira diversa, o acórdão não aprofundou de forma suficiente os meandros que envolvem essa questão jurídica, especialmente por não ter sequer mencionado a legislação estadual que dispõe suficientemente sobre a base de cálculo do ITCMD.

Sendo assim, seria competência do STJ analisar a aludida matéria? Nos parece que não, pois analisar e eventualmente afastar à legislação estadual seria de competência do Tribunal de Justiça, e somente caso fosse declarada a sua ilegalidade ou inconstitucionalidade, o que não ocorreu no caso concreto.

A alegação de infração aos artigos 38 e 148 do CTN não parece suficiente para suplantar a legislação estadual, tendo em vista a competência do Estado para dispor sobre a matéria.

Em síntese, o artigo 148 do CTN não concerne ao mérito da base de cálculo do ITCMD e nem se nega a possibilidade do Fisco Estadual de rever os lançamentos tributários, nos estritos moldes do dispositivo legal; ao passo que o artigo 38 do CTN, como já mencionado, cuida de legislação geral, sendo a legislação estadual aquela específica para esmiuçar o conceito de valor venal enquanto base de cálculo do ITCMD.

A título de exemplo, no Estado de São Paulo, o imposto é disciplinado pela Lei nº 10.705/2000, que, em seu artigo 14 § 3° [8],  também dispõe sobre o critério do valor patrimonial para definição da base de cálculo do ITCMD nos casos em que ações e quotas societárias não foram objeto de negociação ou não tiverem sido negociadas nos últimos 180 dias do fato gerador do imposto.

Não à toa a controvérsia também é recorrente no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), que, adotando posicionamento favorável aos contribuintes, recentemente concluiu que “a opção pelo valor patrimonial contábil privilegia a segurança jurídica e a praticidade, evitando controvérsias sobre métodos de avaliação” [9].

O Tribunal de Justiça do Espírito Santo exarou entendimento semelhante ao cotejar a legislação estadual competente [10].

Verifica-se que a insegurança que perpassa pela definição da base de cálculo do ITCMD na doação e na sucessão de ações ou quotas societárias reverbera em diferentes estados do país e que o tema ainda não foi pacificado, considerando o contraponto entre os tribunais locais e o precedente do STJ sem efeito vinculante.

Disponível em:  https://www.conjur.com.br/2025-jun-21/inseguranca-juridica-no-itcmd-incidente-sobre-doacao-e-sucessao-de-acoes-ou-quotas-societarias/

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