Receita de Consenso: novo paradigma ao consensualismo brasileiro

A Emenda Constitucional nº 132, de 2023, inseriu dispositivos que alteram substancialmente o sistema tributário nacional, como o § 3º do artigo 145, que inseriu, dentre outros, o princípio da cooperação [1].

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Não se pode deixar de ressaltar, por sua vez, que o princípio da cooperação, no contexto da tributação, não é novidade, mesmo que não expressamente previsto no ordenamento constitucional. A cooperação sempre esteve implícita com um papel legitimador e imprescindível, especialmente, no campo do processo administrativo tributário equitativo e na busca pela melhoria da relação entre Fisco e contribuintes.

O sistema tributário nacional, ainda hoje vigente, permeia a complexidade das regras em um mundo jurídico cada vez mais beligerante, indo muito além de lacunas que ensejam conflitos de toda a sorte em contraponto ao constitucionalizado princípio da cooperação, no qual confere dever ao legislador de que o sistema tributário assim o seja.

Segundo Ricardo Lobo Torres, por exemplo, a dedicação do CTN à interpretação e integração da legislação tributária por meio de um capítulo inteiro “trouxe mais dúvidas e insuficiências que a solução para os problemas” [2] (Torres, 2000, p. 25). Afirma ainda o autor que, “em certas épocas os princípios tributários estão em agudo contraste e por não se equilibrarem harmoniosamente dentro da Constituição fazem com que desapareça a própria ordem constitucional” [3] (Torres, 2000, p.43).

A exigência de transformações sociais se impõe na busca pela concretização da justiça social, cujos paradigmas tradicionais devem ser superados mediante políticas eficazes que incorporem a participação dos cidadãos na administração pública, de modo a efetivar o Estado democrático de Direito, fundado no princípio da soberania popular.

Relação entre Estado e cidadão

A tributação talvez seja a relação jurídica mais primordial entre Estado e cidadão, pois é por meio dela que o Estado obtém os recursos para se manter e cumprir com suas obrigações constitucionalmente estabelecidas. É também uma relação de poder por parte do Estado, em que se exige uma prestação positiva por parte do cidadão da qual este não pode se escusar a não ser em virtude de uma regra que assim estipule.

Diante deste novo cenário, o Fisco possui o desafio de promover um debate institucional e inclusivo, formando pontes, por meio da participação dos cidadãos-contribuintes em elucidar o tema atinente àquela norma.

Afirma Peter Häberle (2002, p. 13) [4] (HÄBERLE, 2002, p. 13) que:

Todas as potências públicas, participantes materiais do processo social, estão nela envolvidas, sendo ela, a um só tempo, elemento resultante da sociedade aberta e um elemento formador ou constituinte dessa sociedade.

[…]

O conceito de interpretação reclama um esclarecimento que pode ser assim formulado: quem vive a norma acaba por interpretá-la ou pelo menos por cointerpretá-la […] indica-se como interpretação apenas a atividade que, de forma consciente e intencional dirige-se à compreensão e à explicitação de sentido de uma norma.

Assim, um dos pontos mais relevantes de todo o movimento na tributação de forma a torná-la mais justa, simples e transparente perpassa pela cooperação e possui o condão de dar previsibilidade e estabilizar potencial insegurança da sociedade.

Pelo olhar da administração tributária, é desafiador também se adaptar ao novo ambiente tributário, sob um novo olhar que reciprocamente precisará ter como aliada a sociedade a que se propõe prestar o serviço relevante de trazer aos cofres públicos receitas para o sustento dos serviços públicos prestados pelo Estado.

E neste contexto crucial, para tornar possível um ambiente dialógico, medidas de prestígio à conformidade e de prevenção a conflitos tributários e aduaneiros necessitaram emergir como alternativas para uma postura litigiosa que ainda há no Brasil.

Criação do Receita de Consenso

Em meio a tamanha mudança na tributação com o advento da reforma tributária, a Receita Federal implementou um dos seus maiores passos para dar efetividade ao princípio constitucional da cooperação, com o nascimento do Receita de Consenso, que possui a capacidade de modernizar efetivamente a estrutura ante litígio do órgão fiscal, o qual ainda se fundamenta em pilares vigentes de um sistema tributário já ultrapassado.

O Receita de Consenso foi instituído através da Portaria RFB nº 467, de 30 de setembro de 2024, com objetivo de evitar, mediante técnicas de consensualidade, que conflitos acerca da qualificação de fatos tributários ou aduaneiros se tornem litigiosos. Ele pauta-se não só no princípio constitucional da cooperação, mas também nos seguintes princípios: imparcialidade, voluntariedade, boa-fé mútua, prevenção e solução de controvérsias e cumprimento das soluções acordadas.

Para tanto, foi criado o Centro de Prevenção e Solução de Conflitos Tributários e Aduaneiros (Cecat) na Receita Federal, vinculado à Subsecretaria de Tributação, cujos membros atuarão de forma autônoma e independente em relação à fiscalização tributária e aduaneira.

O objetivo é garantir um espaço de diálogo seguro para que tanto a fiscalização como o contribuinte tragam os elementos que entendam mais pertinente em relação à consequência tributária de determinado ato ou negócio jurídico. E tentar em conjunto chegar à melhor solução jurídica para aquela situação.

Programa aberto a quais contribuintes?

O Receita de Consenso está aberto para os contribuintes que estejam no Programa de Conformidade Cooperativa Fiscal (Confia), no Programa Brasileiro de Operador Econômico Autorizado (OEA), e classificados na categoria A+ no piloto do programa Sintonia. Assim, ele se insere na atuação da Receita em prol da conformidade tributária e aduaneira [5].

Destaca-se que há uma fase de admissibilidade no procedimento, que, no caso, não é automática. Não são aceitos, por exemplo, situações com indícios de fraude ou de crimes contra a ordem tributária. Aos demais casos, a admissibilidade levará em conta a matéria controvertida, o grau de incerteza sobre os fatos tributários ou aduaneiros, a existência de conduta com repercussão em lançamentos semelhantes para períodos de apuração posteriores e a existência de jurisprudência administrativa ou judicial sobre situações idênticas ou similares aos fatos do caso concreto.

O procedimento consensual será realizado por audiência em que o auditor-fiscal do Cecat indicará, de forma sucinta, os fatos, a matéria controvertida e o motivo da admissibilidade. Para a exposição das razões de fato e de direito dos respectivos entendimentos, as partes disporão de até 15 minutos, com início pelo representante do contribuinte, seguido pelo representante da Receita. Ato contínuo, o representante do Cecat formulará questionamentos dirigidos às partes sobre os pontos de divergência, buscando a aproximação dos entendimentos, inclusive por meio de diálogo direto entre as partes.

Sendo possível o entendimento, será redigido termo de consensualidade a ser assinado por ambas as partes, o qual conterá, no mínimo, relatório dos fatos, o entendimento jurídico a ser adotado, a liquidação da obrigação tributária, além das obrigações para as partes. Assinado o termo de consensualidade, será editado ato declaratório executivo pela Sutri no prazo de dez dias, a ser publicado no Diário Oficial da União, que será vinculante.

Um ponto importante em relação ao termo de consensualidade no âmbito do Receita de Consenso é o sigilo em relação à operação objeto de discussão, inclusive em relação aos documentos apresentados pelo contribuinte optante pelo consenso, ficando a publicidade adstrita ao Ato Declaratório Executivo Sutri.

Funcionamento do Receita de Consenso

A atuação do Receita de Consenso pode se dar em dois momentos: em procedimento fiscal, caso haja divergência quanto ao entendimento preliminar exposto pela autoridade fiscalizatória acerca da qualificação de um fato tributário ou aduaneiro, ou na ausência de procedimento fiscal, para definição da consequência tributária e aduaneira acerca de determinado negócio jurídico por ele efetuado.

Essa segunda opção é bastante interessante ao contribuinte na medida em que ele já pode obter uma resposta segura, antes de qualquer procedimento de fiscalização, inclusive, pelo fato de ainda estar em denúncia espontânea, com seus respectivos benefícios.

Torna-se ainda mais atrativo, considerando a nova sistemática de tributação sobre bens e serviços, pois traz a possibilidade de evitar divergências interpretativas através do diálogo contribuinte-Fisco.

Chama-se atenção para este ponto o fato de que vivenciaremos novos ventos tributários e o Receita de Consenso pode se tornar um poderoso instrumento para se evitar que a tributação sobre bens e serviços se torne fonte de tantos litígios e confrontos existentes na antiga sistemática, reduzindo o custo de conformidade das empresas.

Assim, ações que evitem conflitos tributários e aduaneiros precisam tomar força e serem utilizadas na sua plenitude.

Novos tempos demandam novas atitudes, e o Receita de Consenso pode se tornar uma nova cultura não só para âmbito federal, com a inclusão no ambiente consensual da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), mas também servir de incentivo a uma remodelagem de programas similares de diálogo entre Fisco e Contribuintes no âmbito do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), tendo em vista que ambos os tributos possuem regras idênticas e, portanto, com interpretações que devem ser convergentes.

Empreender modelos em que se estimule a confiança recíproca nas relações entre fisco e contribuinte tem mobilizado a Receita Federal nos últimos anos. E acreditamos que poderá servir de inspiração aos demais entes, para que o diálogo seja predominante nas relações tributárias.

Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-jun-16/receita-de-consenso-um-novo-paradigma-ao-consensualismo-brasileiro/

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